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Jornadas Nacionais da Pastoral Familiar
Fátima, 16 de Novembro de 2008


A DIMENSÃO DA ESPERANÇA NA ESPIRITUALIDADE CONJUGAL

Temos pensado muito na relação entre esperança e espiritualidade conjugal, porque não é um tema fácil. E, finalmente, elegemos 4 aspectos da espiritualidade conjugal que, a partir da experiência da nossa própria vida e da de muitos outros casais que temos conhecido nas Equipas de Nossa Senhora, nos 5 continentes, pudemos comprovar que eram básicos, a nível profundo, de uma espiritualidade conjugal que testemunha a esperança.

Estes 4 aspectos são: o diálogo, a vontade profunda, a gratuidade e a alegria.

1. O diálogo no casal

A espiritualidade conjugal não é algo alheio à vida normal, própria de pessoas particularmente perfeitas e, portanto, de certo modo, inalcançável. A espiritualidade conjugal é a mesma vida de casal que todos levamos, mas em que vamos compartilhando o que vivemos cada vez com maior profundidade, até encontrarmos Deus, que está no mais profundo de cada um de nós os dois, e buscá-lO juntos.
Mas tudo começa de uma maneira muito simples, como quando começa uma relação de amor, falando de nós e da nossa vida, comunicando-nos o que somos. Assim começou o nosso noivado. Recordais-vos? Nós contávamos a vida um ao outro, riamo-nos, compreendiamo-nos, reflectiamo-nos nos olhos do outro e admiravamo-nos.
Assim começa também a espiritualidade conjugal. Nesses diálogos espontâneos, nos detalhes da convivência, na pasta de dentes que cada um aperta pelo seu lado ( o meticuloso pela parte de baixo, o rápido pelo meio), em todas as pequenas anedotas da vida em comum.

E como acaba? O resultado de ir encarnando, pouco a pouco, essa espiritualidade conjugal não se pode tocar nem provar, mas pode mostrar-se, e é quando se vê um casal já idoso, os dois sós, numa mesa dum restaurante ou no banco de um jardim, ou andando pela rua, ele com a mão no ombro dela, olhando-se e conversando. Todavia, é interessante,  é divertido e é consolador conversarem um com o outro. Todavia, ele gosta que ela leve um traje azul marinho e, todavia, ela gosta das mãos dele. Dar testemunho da esperança através da espiritualidade conjugal é que os outros pensem: “nós gostaríamos de ser assim”. O testemunho é isso: uma maneira de existir que dá aos outros vontade de existir do mesmo modo.

A comunicação é a base e o alimento da espiritualidade conjugal. Comunicar é falar, mas também é escutar, que não é algo de passivo, mas tão activo como falar. Escutar, vazio de si mesmo, com interesse pelo que o outro diz ou quer dizer, deixando que isso que ele diz nos impregne, antes de o julgar ou de o refutar ou de o temer.
Começamos a falar do que fazemos, do passado, presente e futuro, depois do que pensamos e descobrimos, finalmente dos desejos, frustrações e sentimentos. A maioria dos desacordos do casal provém mais de sentimentos feridos do que de ideias discordantes. Vale a pena deixar sempre claro qual dos dois tem razão se o outro, ainda que tu tenhas razão, se sente ferido ?

O diálogo profundo não é só a ocasião de poder lançar ao outro na cara todas as nossas queixas, mas também a ocasião de lhe dizer o bem que vamos descobrindo e que  continuamos sempre a descobrir nele ou nela, se soubermos olhar. Dizer o bem faz mudar muito mais do que acusar ou acoçar, porque ele quererá ser merecedor desse olhar de carinho e dessa palavra de reconhecimento que sente sobre ele. Por isso, quando toda a admiração morre, é difícil manter o amor.

Nós comunicamo-nos com a palavra, com a escuta e também com a linguagem do corpo, que tanto diz de nós, tantas lacunas preenche e tantas feridas fecha: o sorriso, a carícia, o olhar, o tom de vóz. Mas, do mesmo modo, a linguagem do corpo também põe barreiras e levanta muros. Qual é o nosso gesto mais habitual? O sorriso ou a testa franzida? O olhar frio e distante ou o olhar acolhedor? O sobrolho levantado ou a aprovação com a cabeça? A carícia ou a distância? O tom destemperado ou uma vóz compreensiva? Que no-lo digam os outros.

O diálogo é uma tarefa para toda a vida. Nunca se pode dizer “até aqui”, “já nos conhecemos”, “já não há nada de novo”. Uma pessoa evolui porque passa o tempo, relaciona-se com outros, lê, observa, viaja, sucedem-lhe coisas que a influenciam e a moldam. Essa pessoa, ainda que mantenha um certo núcleo inicial, vai mudando, vai amadurecendo, vai crescendo. Se toda essa evolução não for sendo partilhada com o seu conjuge, com o qual também se passa o mesmo, chega um momento em que cada um já não reconhece o outro, porque se foi afastando insensivelmente daquele que vive a seu lado e, então, o encontro  torna-se impossível e quebra-se a intimidade.
Se isso se prolonga, endurece-se o coração e pode aparecer o ódio e o desprezo, que nos fáz recordar só o pior do que o outro nos pôde fazer e nos leva a ter uma releitura da vida em comum unicamente à luz do mal. Parece que o bom na realidade nunca existiu. E toda uma história de amor fica reduzida a cinzas.

Na maioria dos casais, antes de chegar a uma situação tão extrema, o que vai crescendo entre os dois, quando o silêncio os bloqueia, é uma ligeira película de verniz, que custa a estalar. Não queremos ser o primeiro a dizer a primeira palavra de amor ou de encontro. Expõe-nos, torna-nos vulneráveis, sobretudo se tememos que o outro, convencido da sua razão ou ferido no seu orgulho, não responda, não perdoe, não se deixe comover pela ternura. Muitas vezes, esse que se nega a consertar o que se quebrou é o que se considerava mais virtuoso, porque na aparência dava mais e necessitava menos. No entanto, dizia o escritor Bernanos “Maldito seja aquele que desanima o que tenta amar”, porque o condena a cair por um declive de desesperança. São tentações subtis da relação de casal, subtis porque o mal vale-se de meias mentiras e é precisa muita coragem e muita sinceridade para buscar sempre mais verdade e não nos auto-enganarmos.

Esquecemos que temos um recurso único que é a graça do nosso sacramento, que é como um tesouro depositado numa arca da qual temos a chave, mas não a abrimos. Essa chave é a oração conjugal. Nesses momentos ou épocas de deserto, sem horizonte aparente, sós os dois diante de Deus, reconhecendo a nossa pobreza, damo-nos conta, finalmente, de que pedimos demasiado um ao outro, de que pedimos ao amor conjugal o que só o amor de Deus nos pode dar.
Não pediremos então nada de concreto, porque, inclusivamente, não sabemos o que pedir. Quereríamos sair dessa situação, mas sentimo-nos impotentes. Disse o P.e Caffarel, fundador das Equipas de Nossa Senhora: “Para ter êxito na vida há que saber, há que poder, há que querer. Para ter êxito na oração há que aceitar que não sabemos, que não podemos, que não queremos e assim Deus dar-nos-á o Seu poder, o Seu saber e o Seu querer. Crer em Deus, que está presente em nós e que actua em nós, leva-nos a entregarmo-nos nas Suas mãos e a esperar, pacientes e disponíveis, que Deus venha transformar-nos, enchendo-nos de Si mesmo”.

Maria, aqui em Fátima, é o nosso exemplo. Estava em oração quando o anjo a visitou e lhe anunciou o que certamente nunca havia pedido, nem nunca havia pensado e, portanto, nunca havia querido: que iria ser a Mãe de Deus; mas, como estava vazia de si mesma e ao mesmo tempo intensamente oferecida, pôde aceitar essa chegada de Deus, que a enchia toda. “Faça-se em mim segundo a tua palavra”. E a Palavra encarnou nela.

2. A vontade profunda

Hoje parece que falar de amor é falar de sentimento. E se não se sente o amor a todo o momento, supõe-se que o amor deixou de existir. Mas, o amor é algo mais do que um sentimento. É a adesão da vontade profunda de uma pessoa a outra pessoa, com a intenção de ele mesmo ser feliz, de fazer feliz o outro e de partilhar essa felicidade com os filhos e com os outros. O amor não se mantém por sorte ou por um voluntarismo resignado, mas sim graças a pôr em jogo tudo o que somos a todos os níveis: emoção e razão, espontaneidade e vontade, realismo e desejo, sensibilidade e sexualidade, inteligência e criatividade, dinamismo e quietude, criando entre os dois um projecto de vida único, que cada casal vai construindo ao longo da vida, com acertos, equívocos e muita ilusão.

Tudo o que vale a pena na vida segue esse mesmo mecanismo. Pensai numa obra de arte. O seu início pode dever-se ao impulso da inspiração, mas se o perguntais a um artista verdadeiro, ele dirá tudo o que está por detrás de algo que, à primeira vista, parece tão fácil: preparação, esforço, trabalho, constância, esperança. Na evolução de um artista há momentos de crise, dúvidas no caminho, desfalecimentos. O amor, como a arte, pode passar por uma noite escura dos sentidos, que o purifica, que o sacode, mas que não o destroi, nem o aniquila. O que pôs toda a sua vida em jogo para conseguir uma coisa valiosa, o que se “determinou”, como dizia Santa Teresa, sabe que se trata de manter-se firme, de recordar e ao mesmo tempo de inventar. Chega para ele um momento em que, talvez com maior lucidêz do que ao princípio, se volta para apostar naquilo que um dia vimos claro, na generosidade da juventude: um para o outro e para sempre.

O problema é que somos dois e um não pode consegui-lo sozinho. Necessita da colaboração do outro, da resposta do outro, da complementaridade do outro. Por isso, é tão importante estarem de acordo, antes de se casarem, no estilo de vida, nos valores de fundo, nos gostos e diversões preferidas, ou, então, desenvolvê-los juntos, com capacidade de amizade e de entusiasmo. Os carácteres quase sempre são diferentes, além da lógica diferença dos sexos, mas que, ao menos  ao nível do projecto de vida, haja uma certa convergência.

A preocupação de amar melhor e de ser melhor amado provoca uma certa tensão, uma certa ansiedade, uma certa impaciência, mas é a prova de que o amor continua vivo. Quando se instala a indiferença, que nos converte em “reformados do amor”, é porque se subentende que já fizemos bastante pelo amor do  outro, e isso faz com que o amor perca a sua força, a sua vitalidade, o seu dinamismo.

A convivência aproxima-nos, faz-nos conhecer e querer, mas também nos fáz pagar um preço, porque, com a sua repetição, com a sua rotina, provoca a erosão do que ao princípio parecia ser sempre uma surpresa. Por isso, é importante parar-se e celebrar. Que alguns dias não sejam como todos os dias, que nos aniversários façamos algo juntos, que alguma vez nos sentemos na rua, que compremos para nós alguma água de colónia nova, que os dois façamos alguma viagem, que os netos não nos invadam toda a vida e que todavia reservemos alguma parcela para nós, porque todavia somos um casal e talvez o sejamos agora mais do que nunca.

Tudo isto parece  pedir-nos muito esforço. E um de nós, às vezes, está cansado. Ou está doente ou já não tem ânimo para fazer mais nada. Mas o amor tem também uma componente passiva; não é só trabalho; às vezes, é simplesmente “estar”: estar calados, estar juntos e cada um deixar-se invadir pela presença do outro, pelo desejo de dar passagem ao outro no coração. E, sobretudo, “estarem” os dois na presença de Deus, estarem em silêncio, deixando-se querer por Ele, que Ele interprete o que precisamos e nos dê o que nos quizer dar. Esse é o grande trabalho da oração em nós: descer pelo desejo íntimo e calado ao fundo do nosso ser, para que o fundo suba à superfície e, assim, a vida de Deus e a nossa se convertam numa e mesma vida. Por isso, há tantos casais que, sem fazer nada de muito evidente, com uma vida simples e de entrega de um ao outro, são como a parábola desse “estar” que se enche dos melhores dons do Espírito.

Maria está presente na história de amor de todos nós e preocupa-se para que não nos falte vinho e, portanto, alegria e, portanto, esperança e, portanto, futuro. De modo muito feminino, um pouco indirecto, força o seu Filho: “Fazei o que Ele vos disser”. E o que Ele disse aos servidores foi: “Enchei de água as talhas”. A água é o pouco com que nós podemos contribuir, o que está ao nosso alcance levar: tudo o que nos temos querido um ao outro e nos temos sacrificado um pelo outro, a tristeza que sentimos por não poder fazer melhor, o desejo de voltar a começar, as palavras que tentamos desajeitadamente  dizer um ao outro...
Essa é a água que pomos, bem pouco...mas pômo-la “até ao bordo das talhas”. É seguro, é certo, que, graças à Palavra de Cristo e por intercessão de Maria, receberemos um “vinho inesperado”, que acalentará a nossa vida matrimonial e a converterá num banquete de esperança.

3. A gratuidade

Temos comprovado que, se um casal se propõe viver com austeridade para, em seguida, poder partilhar o que não gastou com os outros, isso é bom, porque conforma um estilo de vida simples, que atrai, que facilita as relações com os outros; mas, todavia, é melhor que a austeridade seja uma consequência da generosidade. Se somos generosos e partilhamos tempo, dinheiro, conhecimentos, casa, amizade, isso leva-nos inevitavelmente a ser mais austeros, a entesourar menos. E se a generosidade está acima, estamos certos de que a motivação para a austeridade  é o amor. E isso é o que conta.

A gratuidade é um estilo de vida, em que cada um se acostuma a não ir ao máximo das possibilidades na vida profissional, a não ser de uma competitividade cega, a não se comparar sempre com os que têm mais, a pôr-se no lugar do outro ( “se eu fosse ele ou ela, o que pensaria, o que sentiria, o que quereria”), a não pensar que se está a fazer caridade quando o que damos é devido ao outro por justiça, a “que a tua mão direita não saiba o que dá a tua mão esquerda”, o que significa, além de que não faças alarde do que dás, que não dês tantas voltas ao teu dar. Dá e esquece.

A gratuidade é acostumarmo-nos, desde o princípio, a ter sempre algum compromisso, por pequeno que seja, que signifique trabalhar pelo bem dos outros. Não basta dar, há que dar-se. Mas, a verdade é que temos muitas frentes e muitas justificações e, sem embargo, é vital, para que o mundo de hoje descubra em nós a esperança, que demos um testemunho de gratuidade. Nós tudo calculamos  tanto, que nos fechamos, por medo, por excessiva prudência, a esse mudo movimento do coração, no qual, às vezes, está o melhor que temos e que nos leva a compadecermo-nos, a colaborar, a ajudar. Deus disse a Abraão “sai da tua casa”. “Sai da tua segurança, sai da tua comodidade, sai das tuas preocupações”. “Sai e encontrar-Me-ás”.

Como nos chegam essas petições, esses compromissos? Primeiro, aprendendo a olhar. Eu digo aos meus netos que, se , às vezes, dou dinheiro na rua a alguém, coisa que não está bem, faço-o para poder olhar para a pessoa e dedicar-lhe um sorriso. Se ninguém olhar para ti é como se te negassem a existência. Estamos sempre a olhar para o nosso umbigo: “o que nos fizeram”, “o que nos devem”, “o que não nos agradecem”. Há que levantar os olhos e ver os outros, porque, assim, a perspectiva muda e cada um de nós passa um pouco para segundo plano.

Segundo, aceitando os apelos que nos fazem. Em coisas, muitas vezes, que nunca teríamos escolhido, está o apelo de Deus, que é sempre um pouco surpreendente. Claro que, às vezes, há que dizer não, quando as crianças são muito pequenas, quando tens  uma pessoa de familia doente em casa, quando tu não te encontras bem; mas, à menor oportunidade, dizer sim tem umas consequências insuspeitadas: o talento multiplica-se e a vida interior enriquece-se.
Comprometermo-nos em casal é o melhor, porque não nos separamos, falamos, complementamo-nos, reunimo-nos, discutimos, rimo-nos e admiramo-nos.

No caso de não nos sentirmos com ânimo para assumir um compromisso externo, ao menos que tenhamos uma casa aberta para viver a alegria e a esperança que brotam da hospitalidade: os nossos amigos, os amigos dos nossos filhos, os parentes que estão longe, as pessoas que alguma vez encontrámos na vida, os próximos mais próximos. Um bom teste seria pensarmos em nomes de pessoas que tenham partilhado a  nossa mesa connosco durante este mês. Lembrais-vos do nome de alguém?

E voltamos sempre a Maria. Não sabemos se haveis reparado numa linha muito curta do Evangelho de S. Lucas, quando nos conta a visita da Virgem à sua prima S. Isabel, que estava já de 6 meses e que a recebeu com o salto do menino no seu seio.
Depois de escutar a oração, tão impressionante, do Magnificat, na qual Maria deixa o Espírito falar nela e dizer que fez nela grandes coisas, sabeis o que faz a seguir? O capítulo do Evangelho não acaba com o Magnificat. Acrescenta uma linha mais. “E Maria ficou com Isabel, cerca de 3 meses, e depois voltou para a sua casa”. Esses 3 meses, somados aos 6 de gravidêz da sua prima Isabel, perfazem 9 meses, o tempo do fim da gravidêz. Não é disparatado pensar que Maria permaneceu junto da sua prima, mais idosa do que ela, até que deu à luz, para a acompanhar, para a ajudar no parto. Maria estava também grávida e era muito jovem, talvez não se sentisse bem de todo, mas permaneceu. Maria não disse a Isabel: “vem para minha casa, que ali te assistirei melhor”, mas antes ficou na casa de Isabel para facilitar as coisas. Só depois dos 3 meses, “voltou para a sua própria casa”.
Isso é a gratuidade: fazer do pequeno algo grande, porque não conta o que fazes, mas sim a atitude de entrega com que fazes o que deves fazer.

4. A alegria profunda

Quando se é jovem, é fácil o entusiasmo. Há saúde, há atractivo, há uma vida pela frente. Se, além disso, houver fé, o clima é de confiança e de esperança. Embora também haja hoje muitos jovens desesperados e desiludidos,  incompreensivelmente, tendo tudo, ou talvez por terem tudo em demasia, ou por solidão, ou por falta de auto-estima, ou por um idealismo que não corresponde ao que encontram na vida, ou por desenganos do desamor, etc. Todos transportamos dentro de nós certas feridas, por muito que nos tenham querido os nossos pais. Sabemos que é quase inevitável. Nós também feriremos sem querer os nossos filhos, porque o nosso amor está tocado de imperfeição, de egoísmo, de pobreza. Só o amor de Deus, que é incondicional, perfeito,
não produz feridas. Quando  esse amor nos chega em plenitude, podemos ajudar-nos uns aos outros, aliviando essas feridas do amor: com a ternura, com o humor, com a sinceridade, com o sorriso, com as carícias, sem levar em conta o mal, sem carregar os sobrolhos, sem consentir à inveja um momento de respiração...
Quanto mais cultivarmos a sensibilidade, mais ricos seremos em possibilidades e recursos: a natureza, a arte, a música, a literatura, o cinema, o desporto, os amigos...
Quanta maior criatividade no trabalho profissional ou na vida, menos possibilidades de tristeza.

No entanto, o tempo passa e por muito felizes que sejamos, em casal e em família, se vivemos com empatia, com compaixão, sofremos pelos outros, com os outros ou por causa dos outros.
Quando se é idoso, quando a doença, as separações, o sofrimento, a morte do outro e a própria morte se vão aproximando, quando um deles já não vai “aonde queria ir”, nem se passou aquilo que teria querido que passasse, mas sim o que, de facto, se passou, temos uma oportunidade de nos abrirmos ao silêncio e à contemplação. Dentro da impotência ou do desconcerto, tem que haver uma esperança e uma confiança. Não nos evitará o sofrimento e é inevitável que nos chegará a morte, mas é certo que, num assombro cheio de gozo, encontraremos o que sempre temos esperado.

E acabamos, outra vez, com Maria, como não podia deixar de ser, aqui em Fátima. Maria era uma mulher senhora de si mesma, que guardava no coração o que não entendia, com serenidade, com dignidade, em páz. O coração de Maria estava morto para o amor próprio e, portanto, nada podia perturbar a sua estabilidade psíquica. Tinha a espiritualidade dos “anawim”, o pequeno resto dos pobres e humildes de Deus, que se mantiveram firmes ante os acontecimentos, porque não se desviam do seu centro, que é Deus, e uma pobre de Deus é uma mulher indestrutível. Maria não tinha eu, não por falta de plenitude pessoal, mas sim no sentido dessa imagem aureolada e artificial que desde pequenos construímos sobre nós mesmos e que passámos a vida a defender, acusando os vai-vens da conduta dos outros e a sua apreciação sobre nós mesmos. Que importante é essa atitude da Virgem, de espera, de dignidade e de silêncio! Maria “guardava no coração” porque não sabia tudo de antemão. Não avançava respostas, antes deixava amadurecer os acontecimentos da sua vida, certamente tão diferentes dos que um dia lhe havia anunciado o anjo, buscando os caminhos de Deus entre a confusão e o desconcerto.
Essa é a verdadeira atitude da esperança cristã. Não é um falso optimismo, nem uma falta de lucidêz ante a realidade, às vezes, dura da vida.
Trata-se de outra coisa.

Resumi-la-íamos assim: Não entendemos, mas estamos. Choramos, mas não desesperamos, nem se instala em nós a amargura. Duvidamos, mas arriscamo-nos. Presentimos que Alguém vem connosco, mas não o sentimos como uma evidência. Estamos na noite, mas reconhecemos os alvores do dia que se aproxima.
Com essa esperança, desejamos a todos que, dia a dia, como Maria, lancemos as nossas raízes nesse centro onde habita a páz de Deus que supera toda a inteligência.

 

Alvaro e Mercedes Gómez-Ferrer

 

Comissão Episcopal do Laicado e Família da Conferência Episcopal Portuguesa.
Autorizada a reprodução dos conteúdos.