Família e Igreja doméstica (2012)

Marta e Miguel Oliveira Panão

 

MARTA: Por ocasião do encontro do Santo Padre com as famílias em Milão, uma menina vietnamita questiona Sua Santidade sobre as suas recordações de família. Essa é uma ocasião única para explorar as recordações do Santo Padre exactamente no seio de uma família cristã. O Santo Padre fala da preparação para o domingo, da música, da dificuldade da guerra e da pobreza suportada em família… mas é com a expressão “um só coração e uma só alma” que inicia o paralelismo entre a família e a igreja cristã nascente descrita nos Actos dos Apóstolos: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma.

Ninguém considerava suas as coisas que possuía, mas tudo entre eles era posto em comum”. (At 4,32).

 

MIGUEL: Na família, ser um só coração e uma só alma, implica também testemunhá-lo –

 como afirma o Santo Padre – “mesmo em tempos muito difíceis, porque era o tempo da guerra, como antes fora o tempo da ditadura e, depois, o da pobreza.” Não vivemos tempos difíceis? Conto-vos uma experiência. Um contrato em “tempos difíceis” é uma providência para uma família. E como bolseiros de pós-doutoramento, sempre que surge uma oportunidade, concorremos. Há um tempo atrás, surgiu no centro de investigação em

que trabalho como bolseiro, um concurso para Investigador, e decidi concorrer. De longe, o meu currículo ultrapassava o dos restantes candidatos, exceto numa coisa. Como nunca fiz investigação fora de Portugal, porque isso implicaria fazer prescindir aos meus filhos da minha presença, não tinha o que era designado como “experiência internacional”. Também ninguém me perguntou porque razão não tinha essa experiência. Mas o essencial é que não havia a sensibilidade de olhar para mim, e ver em mim, também a Marta e os filhos. Isto é, nesta perspetiva, cada membro de uma família “é” enquanto nesse somos capazes de ver todos os outros. Eu sou família e nela encontro a minha individualidade. Não é fácil. Porquê? Porque requer um olhar ao modo da Trindade, um olhar “pericorético”, pois, da mesma forma que não posso contemplar o Pai, sem n’Ele ver o Filho e o Espírito Santo, ou contemplar o Filho, sem ver n’Ele o Pai e o Espírito Santo, ou o Espírito Santo, sem ver n’Ele o Pai e o Filho, como imagem de Deus que somos, o mesmo deveria acontecer para a família humana, o que no seu “dever ser” se constitui como Igreja Doméstica.

 

MARTA: As nossas famílias, todas as nossas famílias, podem ser à imagem da grande família que constituía a primeira comunidade cristã, onde se vivia intensamente a realidade de “um só coração e uma só alma”. Actualmente, a família não se encontra privada de sacrifícios, do exercício de suportar, mas é também no seio da família que fazemos tantas vezes a experiência de plenitude, de alegria, de realização, de paz, de bondade, de misericórdia, de comunhão, de unidade no sentir e no esperar. Como não identificar a família como Igreja e também a primordial “casa e escola de comunhão”, tal como a definiu o Papa João Paulo II?

 

Voltando à resposta dada pelo Papa Bento XVI. O Santo Padre descreve a vida da sua família de uma forma simples, o que faz a sua família muito próxima daquilo que nós efectivamente podemos viver: “O amor recíproco que existia entre nós, a alegria também nas coisas simples”. Esta frase faz-nos lembrar uma experiência pela qual passamos, emblemática para nós, exactamente pela sua simplicidade e pela alegria que dela sentimos.

 

Há já alguns anos, quando ainda não se usavam telemóveis com acesso à internet, saímos de casa com os nossos dois filhos para passear (a terceira ainda não tinha nascido). A certa altura surgiu a ideia de comermos um gelado, mas estávamos no final do mês e não podíamos levantar dinheiro da conta corrente e os poucos trocos que tínhamos não dava para mais do que um gelado… Decidimos mesmo assim pedir um gelado e quatro colheres. Foi uma festa! Depois desse, comemos muitos outros gelados e normalmente um para cada um, mas nunca houve um tão saboroso como aquele partilhado entre todos.

 

Houve uma outra vez em que precisávamos mesmo de fazer umas compras numa loja que possui serviço de babysitting. As crianças estavam entusiasmadas com o projecto da brincadeira. Quando chegámos vimos que estava esgotada a capacidade para o acolhimento de crianças e ficámos todos desiludidos. Elas por não poderem brincar e nós

por sabermos que seria mais cansativo fazer as compras com elas. Como a vontade de amar encontra A resposta, tivemos a ideia de fazer uma “aventura” pela loja, usando o mapa que distribuem à entrada. No fim sentíamo-nos todos felizes, pelo momento tão simples, mas em que se respirava amor recíproco entre nós.

 

MIGUEL: O Santo Padre refere ainda que “crescemos com a certeza de que é bom ser pessoas, porque víamos que a bondade de Deus se refletia nos pais e nos irmãos.” Ser pessoas? O que é ser pessoa? Que tipo de pessoa se forma numa família plasmada pela Trindade, de modo a ser testemunho de Igreja Doméstica para o mundo?

 

O ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26). Mas ainda hoje, culturalmente, depois de sermos indivíduos indiferenciados no seio de uma comunidade (como nas tribos); ou depois de indivíduos sujeitos à vontade de alguns (como nas sociedades medievais); vivemos numa sociedade que centra o “ser pessoa” na individualidade. Porém, será a “individualidade” que nos personaliza? Numa perspectiva trinitária, a personalização do indivíduo consiste no afastamento do seu “eu”, concebido como um ser fechado sobre si mesmo, de tal modo que a identidade pessoal surja no “êxodo de si”, no “abrir-se” em direção ao outro. Neste sentido, um indivíduo torna-se pessoa apenas quando se encontra em relação com um outro, distinto de si mesmo. Nomeadamente, tornar-se pessoa nos relacionamentos de amor recíproco encontra na família um espaço privilegiado para tal. Na prática, isto significa colocar o centro de gravidade da nossa própria existência como pessoa na “relação”. Ser pessoa é ser relacional. Mas ser relacional de que modo? Amando. Mas como amar? Dando-se. Amar é dar-se a si mesmo.

 

O que tem isto a ver com sermos imagem e semelhança de Deus? Quem é Deus? Ninguém sabe bem … mas de que modo é, por Jesus, sabemos ser Trindade, ou seja, Pessoas-em-Comunhão. Assim, se assumirmos que a imagem do “em” é o “como”, então, do ponto de vista trinitário, somos “pessoas-como-comunhão”. E aqui reside o cerne de uma resposta à pergunta: o que é ser pessoa? Ao modo da Trindade, e no seio de uma família como Igreja doméstica, não se é tanto “pessoa-como-indivíduo” (centrado em si), quanto se é “pessoa-como-comunhão” (centrado fora de si). Uma experiência.

 

Um dia a nossa filha mais velha quis falar comigo sobre Jesus, contar o que tinha aprendido na catequese e foi um momento de imensa alegria para os dois. A um dado momento, vinha a propósito dar-lhe um exemplo visível e simples deste ser “pessoa- como-comunhão” e veio-me à mente a beleza de uma flor. Quando é que vemos realmente a beleza de flor? Não é tanto quando ela está fechada sobre si, mas antes quando se abre para fora de si. Da mesma forma, somos mais bonitos, melhores, mais pessoa, quando nos abrimos aos outros e vivemos fora de nós mesmos. Entretanto, terminado diálogo, ela foi brincar com o irmão. A um dado momento apercebi-me que o irmão queria o brinquedo para si e ouvi-a dizer “não podes estar fechado, tens de te abrir!”

Fiquei surpreendido! Porém, pouco tempo depois a situação inverteu-se e desta vez era ela a querer o brinquedo para si. Nesse momento recordei-lhe do que tinha dito antes ao irmão, e ela de imediato deu o brinquedo ao irmão. Esta é a experiência da comunhão na abertura de nós mesmos aos outros.

 

MARTA: Num dos Natais ofereceram ao nosso filho um triciclo novo, mesmo se ele já tinha um herdado dos primos. A certa altura soubemos de uma família com crianças mais pequenas que ainda não tinham triciclo e pensámos oferecê-lo. Mas isso foi o que pensámos nós, … na altura o nosso filho era pequeno e pensamos que não fosse aceitar a nossa proposta. Como a nós parecia-nos o mais correcto, combinamos que os nossos amigos passassem a buscar o triciclo.

Na verdade, a nossa ideia era ir levá-lo à garagem sem que ele se apercebesse. Mas Deus tinha algo para nos ensinar… Quando eles chegaram eu estava sozinha em casa e tinha de ir à garagem com todos eles. Essa foi uma oportunidade de explicar ao nosso filho que podemos dar aos outros o que temos a mais. Ele concordou mesmo, se era pequeno, e foi ele próprio que colocou o triciclo no porta-bagagens.

 

A abertura aos outros faz-nos ter a nossa casa aberta para receber todos, esperado ou inesperado. Uma vez, por exemplo, o Miguel precisava de se encontrar com dois amigos por causa de trabalho e tinham combinado ir jantar juntos a um restaurante. Como os nossos filhos estavam de férias e sabendo que os amigos poderiam ter dificuldades em pagar o jantar, fizemos o jantar em nossa casa, num clima muito mais tranquilo e certamente gastando muito menos dinheiro.

 

Recentemente tivemos um fim de semana para adolescentes. Juntamente com mais um grupo de pessoas, ficámos responsáveis por preparar a iniciativa. Na sexta-feira à noite antes do fim de semana, faltava-nos preparar concretamente muito do material. Um casal que também estava connosco na organização, disse-nos que estavam disponíveis para ajudar. Abrimos espontaneamente a nossa casa para que viessem, não tanto na perspectiva de ter mais 4 mãos, mas acolhendo-os preparando um jantar especial. Vivemos um serão óptimo, a disponibilidade para ouvir, para acolher, foi mesmo mais importante do que acabar tudo. Ficamos convencidos que vale mais juntos.

 

MIGUEL: Gostaríamos ainda de vos partilhar um trecho que nos orienta na vida de família, e que faz parte da lição que Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares, fez por ocasião da concessão de um doutoramento Honoris Causa em teologia pela Universidade de Trnava, na Eslováquia. Diz Chiara: “a família está indissoluvelmente entrelaçada com o Mistério da vida íntima de Deus, que é Unidade e Trindade. Quando Deus criou o ser humano à Sua imagem, diz no Génesis, criou-o homem e mulher e colocou-o no vértice da Criação. Como se afirma na Mulieris Dignitatem, no princípio, Ele plasmou uma família, um homem e uma mulher chamados a viver uma comunhão de amor tal que espelhe no mundo a comunhão de amor que existe em Deus.

Por isso, ‘à luz do Novo Testamento – afirma João Paulo II – é possível vislumbrar como o modelo originário da família deve ser procurado no próprio Deus, no mistério trinitário da sua vida’.

 

 

Pela espiritualidade da unidade, vai-se até Deus amando o irmão: então, o amor evangélico de um cônjuge pelo outro e pelos filhos, e o amor recíproco entre esses, pelo qual experimentam a presença de Jesus entre eles, é sinal e reflexo do amor trinitário. Mesmo se hoje as famílias sofrem ataques sobre ataques, é minha convicção, valorizada pela experiência, que a espiritualidade da unidade pode dar um válido contributo para a realização da família segundo o projeto de Deus.” A vida da Trindade, que é puro amor, e pura relacionalidade, faz-nos família quando somos amor na relacionalidade. Um amor concreto, nas coisas mais simples, quotidianas, naquilo que é normal, não banal.

 

MARTA: Para terminar, o Santo Padre conclui a sua resposta de uma forma, talvez, inesperada e diz: ” se procuro imaginar como será o Paraíso, parece-me sempre que seja o tempo da minha juventude e da minha infância. Neste contexto de confiança, de alegria e de amor, éramos felizes (…) espero voltar “a casa”.”

Este é um grande empenho, uma meta árdua… fazer com que cada membro na nossa família, incluindo nós próprios, possa um dia ter o desejo de que a vida do Paraíso seja um pouco como voltar a casa, é viver não só o “assim na terra, como no céu”, mas também “assim no céu, como na terra”.

 

 

 

 

 

Nota:

Resposta do Santo Padre à questão da criança vietnamita

SANTO PADRE: Grazie, carissima, e ai genitori: grazie di cuore. Allora, hai chiesto come sono i ricordi della mia famiglia: sarebbero tanti! Volevo dire solo poche cose. Il punto essenziale per la famiglia era per noi sempre la domenica, ma la domenica cominciava già il sabato pomeriggio. Il padre ci diceva le letture, le letture della domenica, da un libro molto diffuso in quel tempo in Germania, dove erano anche spiegati i testi. Così cominciava la domenica: entravamo già nella liturgia, in atmosfera di gioia. Il giorno dopo andavamo a Messa. Io sono di casa vicino a Salisburgo, quindi abbiamo avuto molta musica – Mozart, Schubert, Haydn – e quando cominciava il Kyrie era come se si aprisse il cielo. E poi a casa era importante, naturalmente, il grande pranzo insieme. E poi abbiamo cantato molto: mio fratello è un grande musicista, ha fatto delle composizioni già da ragazzo per noi tutti, così tutta la famiglia cantava. Il papà suonava la cetra e cantava; sono momenti indimenticabili. Poi, naturalmente, abbiamo fatto insieme viaggi, camminate; eravamo vicino ad un bosco e così camminare nei boschi era una cosa molto bella: avventure, giochi eccetera. In una parola, eravamo un cuore e un’anima sola, con tante esperienze comuni, anche in tempi molto difficili, perché era il tempo della guerra, prima della dittatura, poi della povertà. Ma questo amore reciproco che c’era tra di noi, questa gioia anche per cose semplici era forte e così si potevano superare e sopportare anche queste cose. Mi sembra che questo fosse molto importante: che anche cose picole hanno dato gioia, perché così si esprimeva il cuore dell’altro. E così siamo cresciuti nella certezza che è buono essere un uomo, perché vedevamo che la bontà di Dio si rifletteva nei genitori e nei fratelli. E, per dire la verità, se cerco di immaginare un po’ come sarà in Paradiso, mi sembra sempre il tempo della mia giovinezza, della mia infanzia. Così, in questo contesto di fiducia, di gioia e di amore eravamo felici e penso che in Paradiso dovrebbe essere simile a come era nella mia gioventù. In questo senso spero di andare «a casa», andando verso l’«altra parte del mondo». 

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