A alegria do amor e os desafios à Pastoral Familiar

Jornadas Nacionais da Pastoral Familiar

Fátima – 23 de outubro de 2016

11h00: Partilha Vivencial

 

Começo esta minha conversa convosco, por uma pequena história. É a história do diálogo entre um pároco ancião e o jovem sacerdote, filho da sua comunidade: “Padre Fernando, o que é que a gente pode fazer pelas famílias da nossa Paróquia”? O Padre Fernando, na sua irreverência juvenil, responde: “Padre Jorge: Acho que quase nada. As famílias que façam”!

 

Da Pastoral para (sobre) a Família à Pastoral (da) com a Família

 

1. Esta é a primeira dificuldade da pastoral familiar, que tomo como desafio. Passar de uma pastoral sobre a família ou para a família a uma pastoral em família, com a família, da família, de modo que as famílias se tornem sujeitos ativos da pastoral familiar (cf. AL 200; 287). E são-no, desde logo, pela própria vida familiar, onde se afirma e cresce a família como Igreja doméstica. E são-no, pelo testemunho de santidade quotidiana, vivendo de modo extraordinário as coisas ordinárias. E são-no pela relação de ajuda a outras famílias. E são-no pela colaboração em grupos, associações, movimentos, eclesiais ou sociais ou culturais, que promovam a vida e a família. E convinha mesmo, que começassem a sua “pastoral familiar” em casa, dando este contributo insubstituível, de viver a alegria do amor e assim fazer crescer a família, como primeira célula da Igreja e primeira escola de vida social. Não me apraz nada ver gente que faz da Igreja a sua primeira casa, mas não faz da sua casa a primeira Igreja!

 

Custa-nos, portanto, ultrapassar esta perspetiva paternalista da pastoral familiar, em que a Igreja toma as famílias como alvo da sua solicitude pastoral e não como protagonistas e “sujeitos cada vez mais ativos da pastoral familiar” (AL 200; cf. 287). Colocar as famílias no coração da pastoral familiar é um desafio não fácil. Não é fácil, porque elas próprias se encontram numa encruzilhada de tarefas, horários, problemas, fraturas e feridas, em que sobra pouco espaço e tempo para desenvolver o espírito familiar em casa, qualificar o seu compromisso pastoral na comunidade e valorizar o seu empenho social. E depois, não é fácil envolver as famílias, porque, como refere ironicamente o Papa, “diz-se, muitas vezes, que a hora dos leigos chegou, mas parece que o relógio parou” (Carta ao Cardeal Marc Ouellet, Presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, 19.03.2016). Ainda não nos decidimos seriamente a acreditar e a potenciar a capacidade evangelizadora dos leigos, no seu faro pastoral, na sua insubstituível missão, dentro e fora de portas, na Igreja e no mundo. Precisamos de acreditar na força profética do testemunho das famílias, em que todos, crianças e adultos, são capazes de profetizar e até os anciãos são capazes de sonhar (cf. At.2,17; cf. Joel 3,1-5). Achamos muitas vezes, que “se for o senhor padre a fazê-lo é outra coisa”. E sê-lo-á, mas para pior. Não basta, por isso, cuidar das famílias, é preciso envolver as famílias no cuidado pastoral das famílias. Depois do “primeirear” (tomar a iniciativa), “envolver” é o segundo verbo, que carateriza uma «Igreja em saída» (EG 24).

 

Da programação de iniciativas à dimensão familiar da pastoral

 

2.  Uma segunda dificuldade, enquanto Pastor, é saber bem o que será isto da «pastoral familiar». Tratar-se-á de uma pastoral avulsa, disseminada num conjunto de atividades, a marcar o dia do pai, o dia da mãe, o dia dos avós, o dia das crianças, as bodas de prata e de ouro, a que se juntam a preparação para o batismo e o matrimónio? Ou trata-se, de desenvolver, em primeiro lugar, uma pastoral «familiar», tomando aqui esta palavra como expressão de uma comunidade que se edifica à imagem de uma “família de famílias” (AL 87)?! Não deve ser “familiar”, por sua natureza, toda a pastoral? Não é, aliás, a família, o modelo à luz do qual devem desenvolver-se todas as formas de vida em comum, de associação e de vida eclesial, coletiva ou social? Sabemos, do cristianismo nascente, quanto São Paulo, por exemplo, se inspirou na “família”, na autoridade paterna, no cuidado materno, na relação fraterna e filial, no exemplo do governo da «casa», como arquétipo para a edificação das comunidades cristãs e para a escolha dos seus responsáveis. E aqui a Igreja aparece realmente como “família de Deus”, tanto mais quanto as famílias cristãs se constituem como pequenas igrejas domésticas (cf. Rom.16,23; Col.4,15; Filem 2).

 

Há, de facto, um espírito familiar, na pastoral, quando se cuida do acolhimento, sobretudo dos mais frágeis e vulneráveis, quando se desenvolve a proximidade com todos, quando se geram laços de fraternidade e de caridade entre os fiéis, quando se acompanham as pessoas, nos seus momentos e nos eixos existenciais das suas vidas, quando se atende aos percursos pessoais e às etapas de crise e de crescimento de cada um… quando a Igreja se revela então uma “Mãe de coração aberto” (EG 46;47), capaz de acolher e gerar a vida, capaz de alimentar, de perdoar, de curar as feridas e de festejar cada passo, cada etapa (AL 163), da vida e da alegria do amor em família.

 

Fazer crescer a Paróquia, como uma “família de famílias”, como “casa e escola de comunhão” (São João Paulo II, N.M.I.43), em que todos se sintam “como em sua casa” (EG 199), a começar pelos mais pobres e frágeis, é talvez o desafio, que fica a montante de todas as outras atividades, que são levadas a cabo pela Pastoral Familiar.

 

Talvez a Pastoral Familiar não deva ser “uma agenda de iniciativas e programações pastorais”, “para as famílias”, mas a criação de um clima familiar, na vida das comunidades, em que as famílias se geram e regeneram na fé, em que crescem e frutificam no amor, num processo de geração de vida nova, em que elas mesmas se sentem protagonistas da solicitude da Igreja, por todos, e por cada um, desde o nascimento à morte (cf. J. J. Pérez-Soba). Muitas vezes sinto que a Pastoral familiar está dispersa num conjunto de iniciativas, sem horizontes, apostada em resolver problemas, em vez de os antecipar; e isto já, para não falar, por exemplo, numa certa pastoral da juventude, centrada na ocupação de tempos livres e não na tarefa de ajudar os jovens a construir um projeto de vida.

 

Do mau momento da preparação para os sacramentos a uma oportunidade para o evangelho

 

3. A terceira dificuldade, que tomo como desafio, é a de fazer da preparação para os sacramentos, sobretudo para o batismo e matrimónio, um “momento missionário” (Bento XVI), uma oportunidade para o anúncio do evangelho (cf. P. Bacq – C.Theobald) e não, na ótica de quem os pede, “um mau momento por que tenho de passar”, ou “o preço que tenho de pagar para ter direito aos sacramentos”.

 

É preciso olhar, para quem nos bate à porta, a pedir um sacramento, não como um “problema pastoral”, ou mais uma “chatice” a enfrentar, mas como uma bênção a acolher, uma nova oportunidade para o anúncio do evangelho.

 

Corre-se, aliás, o risco de uma certa instrumentalização dos fiéis e dos sacramentos, quando se apresenta, como condição sine qua non, a realização de um “curso de preparação” para ser padrinho, para ser crismado, para casar… quando na verdade, não é disso que se trata, porque não há «curso» para ser marido e esposa, pai ou mãe, padrinho ou madrinha, ou mesmo para ser padre. E infelizmente nos nossos cartórios paroquiais, não faltam padres, diáconos e secretários paroquiais afetados pelo “vício administrativo”. Em vez de escutar e “tirar as medidas” para oferecer um “fato à medida”, prefere-se impor o “fato pronto-a-vestir”, que afinal fica curto nas mangas. Em vez de acolher, com alegria, estamos a exigir, sem piedade. Em vez de propor um percurso, estamos a impor um curso. Em vez de escutar a história de cada um, onde se vislumbram tantos sinais de Deus, temos a nossa narrativa depressa a debitar. Em vez de dialogarmos, de igual para igual, temos a tentação de falar “de cima da burra”, com a autoridade do nosso lugar, deixando os outros sem resposta.

 

Temos, pois, de agradecer aos não praticantes, aos distantes, aos dispersos, quando nos batem à porta, mesmo sem saber bem todo o alcance do que nos estão a pedir. Porque são então as ditas «periferias» a entrar-nos pela casa dentro, quando, em bom rigor, devíamos ter sido nós a sair ao seu encontro. Fala-se hoje muito de sair ao encontro das “periferias”, de ir às casas das pessoas, de lhes falar ao coração, mas esquecemo-nos de acolher misericordiosamente as pessoas (Diocese do Porto, Plano Diocesano de Pastoral 2015-2020, Porto, p.31), que nos procuram e batem à porta e enfrentam a máquina burocrática ou a alfândega da paróquia, onde se fala tantas vezes um calão eclesiástico, que eles tampouco poderão compreender. Ora “a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fatigante” (EG 47).

 

Isto exige, de todos, uma conversão pastoral, porque não basta protestar e dizer que as pessoas fazem da paróquia uma estação de serviço enquanto nós, tantas vezes, organizamos e construímos uma Igreja, segundo o modelo dos serviços públicos, com horários rígidos e taxas fixas.

 

Confesso-vos que eu próprio, desde o início do meu ministério paroquial, tive de me converter, para não cair no enfado ou apresentar-me, com cara de vinagre, quando me chamavam para atender alguém que não está nas “condições” exigidas para batizar ou casar ou ser padrinho. E, em vez de ficar ansioso e nervoso, com as situações mais difíceis, aprendi, pouco a pouco, a alegrar-me com cada pessoa, com cada família, com cada bebé, porque a “ovelha” voltou ao redil e temos uma boa oportunidade de conversar. E, deste modo, o incómodo das situações ditas “irregulares” transformaram-se, para mim, em “oportunidades” de diálogo e de anúncio, de proposta e de aprofundamento das motivações, de conhecimento e de acompanhamento, com toda a paciência e misericórdia. Na verdade, a Paróquia é chamada “a ser «a própria Igreja que vive no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas». Isto supõe que esteja realmente em contacto com as famílias e com a vida do povo, e não se torne uma estrutura complicada, separada das pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para si mesmos” (EG 28).

 

Neste âmbito da preparação para o matrimónio (e fico-me por aqui porque é por aqui que mais tenho andado), julgo necessário fazer, pelo menos, duas passagens:

3.1. Passar dos cursos gerais e racionaisaos percursos pessoais, remotos e diferenciados:

 

A preparação dos sacramentos tem de aparecer como uma espécie de iniciação ao sacramento do matrimónio (AL 207), ou de reiniciação à vida comunitária e ao sentido cristão da vida, de modo a não afastar os jovens do sacramento (AL 207) e a ajudar os casais, por exemplo, a ver a diferença entre a nossa proposta cristã e o rito social de integração que pretendiam simplesmente. Neste sentido, é preciso acompanhar a pastoral do acolhimento com uma pastoral da proposta cristã.

 

Este esforço é tanto mais necessário, quanto, muitas vezes, os sacramentos são procurados mais como “ritos” de integração na cultura e na tradição familiares do que integração na vida eclesial. É preciso, por isso “guiar” os noivos (AL 205-211), diz o Papa, em direção ao sacramento, valorizar o que já têm – e são muitas as sementes do verbo, na vida dos casais em situações imperfeitas (AL 76-79) e é tão belo ajudar a desvelar a presença oculta da graça na vida das pessoas – e propor o que lhes falta ainda. “Guiar” implica, por isso, iniciação, mistagogia, companhia, acompanhamento, experiência e discernimento, integração progressiva, no respeito pelas etapas de cada um… E não pensar que é preciso uma licenciatura básica de teologia… para conceder um sacramento…

 

Creio que as nossas propostas de preparação para o Matrimónio, por exemplo, têm de ser revistas, quer quanto aos conteúdos, quer quanto às metodologias, para se ajustarem às reais necessidades e contextos da vida das pessoas. Teremos de renunciar à “massificação” das propostas para os “grandes grupos” e sermos mais ousados e criativos, em respostas mais personalizadas, de modo a não excluir ninguém, simplesmente porque não temos dia, nem horário, para que possam fazer o seu próprio caminho.

 

3.2. Passar da psicologia à pedagogia, do receituário psicológico a uma verdadeira pedagogia do amor. Não caiamos no ridículo de querer «ensinar o padre nosso ao vigário», fazendo da preparação para o matrimónio, por exemplo, um cocktail de receitas psicologizantes, ou de idealismos impraticáveis (cf. AL 135). É preciso sobretudo desenvolver, com os noivos, e mesmo antes, com os adolescentes e jovens, uma pedagogia do amor, que os oriente para o matrimónio, e um caminho de descoberta da beleza, da alegria e das exigências do amor, sempre chamado a crescer. Penso que o Papa Francisco, na sua Exortação Amoris Laetitia, procura sobretudo incentivar-nos a isto: a cuidar da beleza e a fortalecer a alegria do amor em família, sabendo que este amor dá os seus passos, conhece as suas crises (cf. AL 231-232) e desilusões (cf. AL 320) e passa necessariamente por um caminho de renúncias e adaptações, não fáceis para ninguém, mas que, uma vez assumidas e vencidas, tornarão possível “um amor reforçado, transfigurado, amadurecido, iluminado” (AL 238).

 

Para esta pedagogia do amor o exemplo e apoio dos casais e das famílias é fulcral. E, na busca desta luz, para iluminar as situações, a missão da Igreja é comparável à de um farol, que projeta ao longe a esperança, ou de uma tocha, que ilumina e acompanha de perto e no concreto (cf. AL 291). Para isso, é muito mais inspirador o evangelho que qualquer psicologia ou filosofia oriental. Iluminar, na luz da Palavra de Deus, o sentido do amor, do casamento, da dor, do sofrimento, é muito necessário e nem sempre o fazemos. Devíamos ter como propósito primeiro não tanto “dar conselhos”, mas anunciar, em primeiro lugar, a Boa Nova do matrimónio e da família (AL 1; 58; 200-204). Diria que há que fazer “da alegria do evangelho do matrimónio e da família a nossa missão”.

 

Resumindo, menos cursos e mais percursos, menos burocracia e mais mistagogia, menos psicologia e mais pedagogia, menos moralização e mais evangelização… na preparação para o matrimónio!

 

4. Haveria aqui ainda lugar, para falar da dificuldade em fidelizar os casais e os pais, as famílias em geral, na vida comunitária, na catequese e na prática sacramental, para fazer frente a uma fé a la carte, a uma prática subjetiva e intermitente e a uma relação sentimental ou epidérmica com Cristo e a Igreja.

 

Há um desfasamento entre a riqueza que temos e queremos oferecer e os ritmos e interesses das pessoas, que nos procuram. Há muito desencanto e desilusão numa sementeira, quantas vezes, generosa, mas com poucos frutos, pelo menos, na nossa estação. O acompanhamento das pessoas, os caminhos de aprofundamento e de empenhamento na fé não são fáceis. Penso que não é só por efeito cultural. Sou levado a pensar que há mesmo um desajustamento entre a oferta e a procura, que nos deveria fazer pôr em questão. Também eu “sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação” (EG 27).

 

Que o Espírito Santo nos dê a coragem de, ao menos, começar… pela família, precisamente, que é de todos e para todos o nosso primeiro lugar!

Bibliografia:

 

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